sexta-feira, 17 de setembro de 2010
Que a ficha (limpa ou suja) caia.
p'ra essa democracia
tradicional, neo-liberal;
a eleição do jornal
é a voz do povo, e a pesquisa
direciona a escolha divina
de duas ou três figuras,
inaugura a nova moldura,
pasteuriza anseios, minimiza
devaneios ideológicos.
Fidalgos, empresários,
industriais e sujeitos
normais, passíveis de desejos
de posse, de poderes
imperiais, podres facetas,
facilidades em terras de zé
ninguém, embelezam suas faces,
escancaram vergonhosas, falsas
qualidades incomuns ao cidadão
coletivo, vivo e impotente.
O apelo é grande, empurrado
guela abaixo no consumidor
de televisão e rádio; o modelo
de representatividade é fantasioso,
na verdade, um gostoso sabor
de isenção, transferência
de responsabilidade, dentro
das mudas bocas da enorme
maioria de zumbis-alienados,
ensinados a respeitar o trabalho vão.
Falta pão nesse circo, sobra
mão nessa massa violada, renda
acumulada, mentira deslavada,
lavagem de dinheiro e p'ra comer;
o chiqueiro está cheio de porcos
famintos por algum privilégio,
algum colégio eleitoral
que chancele a farra toda; a marra
que não sai de moda, que as fracas
garras da opaca lei não querem punir.
domingo, 22 de agosto de 2010
“Acho que quando crianças todos temos um relacionamento embaçado, emocional, sonhado com a realidade; para uma criança tudo é fantástico porque é desconhecido, jamais visto, nunca experimentado, o mundo apresenta-se diante dos seus olhos totalmente desprovido de intenções, de significados, vazio de síntese conceitual, de elaborações simbólicas, é só um gigantesco espetáculo, gratuito e maravilhoso, uma espécie de ameba que respira e ultrapassou os limites, na qual tudo habita, sujeito e objeto, confusos num único fluxo incontrolável, visionário e inconsciente, fascinante e aterrorizante, do qual ainda não emergiu o vértice, a fronteira da consciência.
Quero contar sem pudores o que me acontecia quando tinha sete ou oito anos. Havia batizado os quatro cantos da cama com o nome dos quatro cinemas de Rimini: Fulgor, Opera Nazionale Balila, Savoia – como se chamava o outro? -, Sultano. Ir para a cama era uma festa. Nunca fiz malcriação para não ir dormir, tudo o que os adultos diziam à mesa logo me fazia perder o interesse, de modo que, tão logo podia, corria para o quarto e me enfiava embaixo do lençol, e muitas vezes com a cabeça sob o travesseiro. Fechava os olhos, esperava quietinho com a respiração presa e coração batendo rápido, até que, de repente, começava o silencioso espetáculo. Um dos espetáculos mais extraordinários. O que era? É difícil contar, descrever, era um mundo, uma esplendorosa fantasmagoria, uma galáxia de pontos luminosos, esferas, círculos, reluzentes, estrelas, chamas, vidros coloridos, um cosmo noturno e cintilante que primeiro se apresenta imóvel, e então num movimento sempre mais amplo e envolvente, como um imenso redemoinho, um farol espiralado. Eu era sugado e me sentia confuso em meio a essa explosão, numa espécie de vertigem que não me dava náuseas. Durante um tempo que não saberia estabelecer, mas em todo caso não era muito longo; finalmente terminava, silencioso como tinha vindo, perdendo força como as ultimas faíscas de fogo que se apaga. Eu esperava alguns minutos, colocava a cabeça em outro canto e as imagens recomeçavam. Da terceira vez eram mais desbotadas, tinham cores menos lúcidas. Raramente o espetáculo noturno se repetia quatro vezes. No final, meio cansado mas satisfeito e ainda deslumbrado por todo aquele bombardeio de estrelas e brilhos solares, caía no sono. Isso tudo durou muito tempo, foi-se apagando com os primeiros sinais de adolescência, com outras perturbações muito mais concretas. É provável que se essas visões infantis continuassem com a maturidade teriam engolido toda a capacidade de pensar e agir. Não se trata de ficar em perene contemplação das próprias fantasias infantis. O importante seria reencontrar, no plano da consciência, a faculdade visionária. Exatamente porque é uma das possibilidades da natureza humana e não há razão para nos privarmos dela.”
FELLINI, Federico. “Fazer um filme” (p. 123-124)
sugerido por Priscyla Gomes
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
Palco.
O produtor começou a contagem: 5, 4, (fez silêncio e continuou com os dedos) 3, 2, 1.
As luzes se ascenderam, todas focaram apenas um lugar em meio ao cenário escuro. Sobre a poltrona, atrás da mesa, eu lhes disse - Boooa noite amigos! Ou bom dia, depende de que horas são para vocês. Por aqui é sempre uma deliciosa madrugada de outono, fiquem a vontade e sintam-se em casa.
Sejam bem vindos a Le Cadavre Exquis!
Nesse primeiro programa iremos nos apresentar - cada um a sua maneira e cada qual ao seu gosto - e espero que vocês gostem. Hoje nos colocamos a sua frente despidos de toda a vergonha e investidos de toda coragem para nos mostrarmos a você, caro leitor, sem meias palavras nem truques, sem perfumaria ou tucanagem. Somos o que somos e ponto! Gostem ou não, nos amem ou não, somos isso. E vocês, como eu bem sei o que são, irão gostar de nos, irão nos amar, irão esperar por nossas palavras com anseio. Do contrário? Sem dúvidas, todos queimarão! Não poderia ser diferente conosco.
Antes de dar a palavra aos meus companheiros que hão de entrar por esse palco e lhes apresentarem seus próprios shows sinto-me honrado em introduzi-lhes a vocês. Permitam que eu os apresente, vejo nesses sorrisos e olhos brilhantes que já os amam.
Saberão mantê-los interessados e alegres: irão jogar luz nas suas vidas negras e trevas nos seus sorrisos luminosos.
sábado, 17 de julho de 2010
Poético-editorial.
Nota.
Aquelas notas escritas,
tocadas, ouvidas, cantadas
pelos mesmos que leram
os papéis, comeram
os pastéis-de-feira
e foram trabalhar
na segunda hora,
à sua maneira,
agora não se sente mais.
Já não se nota
o burburinho inquieto
daqueles que, de perto,
gritaram, lutaram, morreram,
a cada dia um pouco mais
e, ao menos, conseguiram chamar
atenção ao que realmente importa,
para que todas as tortas portas
se abrissem na mesma direção.
Já não se anota mais
em papel de jornal;
prefere-se um impessoal
aparato meramente calculador,
colorido e preto-e-branco,
cheio de manhas, capaz
de façanhas incríveis
e sensíveis formas de distanciamento,
chamado "pessoal computador".
Já não me importo mais
com você; se lê ou se não lê,
para o bundalelê é tudo
como todo mundo sempre quis;
o mundo é legal,
é ilegal ser feliz,
e a maneira formal de exprimir
tudo o que sentir
é participar de "le cadavre exquis".
-Felipe Sanches
(O bom moço, que cansou-se de ser bom e já não é mais tão moço).