domingo, 22 de agosto de 2010


“Acho que quando crianças todos temos um relacionamento embaçado, emocional, sonhado com a realidade; para uma criança tudo é fantástico porque é desconhecido, jamais visto, nunca experimentado, o mundo apresenta-se diante dos seus olhos totalmente desprovido de intenções, de significados, vazio de síntese conceitual, de elaborações simbólicas, é só um gigantesco espetáculo, gratuito e maravilhoso, uma espécie de ameba que respira e ultrapassou os limites, na qual tudo habita, sujeito e objeto, confusos num único fluxo incontrolável, visionário e inconsciente, fascinante e aterrorizante, do qual ainda não emergiu o vértice, a fronteira da consciência.
Quero contar sem pudores o que me acontecia quando tinha sete ou oito anos. Havia batizado os quatro cantos da cama com o nome dos quatro cinemas de Rimini: Fulgor, Opera Nazionale Balila, Savoia – como se chamava o outro? -, Sultano. Ir para a cama era uma festa. Nunca fiz malcriação para não ir dormir, tudo o que os adultos diziam à mesa logo me fazia perder o interesse, de modo que, tão logo podia, corria para o quarto e me enfiava embaixo do lençol, e muitas vezes com a cabeça sob o travesseiro. Fechava os olhos, esperava quietinho com a respiração presa e coração batendo rápido, até que, de repente, começava o silencioso espetáculo. Um dos espetáculos mais extraordinários. O que era? É difícil contar, descrever, era um mundo, uma esplendorosa fantasmagoria, uma galáxia de pontos luminosos, esferas, círculos, reluzentes, estrelas, chamas, vidros coloridos, um cosmo noturno e cintilante que primeiro se apresenta imóvel, e então num movimento sempre mais amplo e envolvente, como um imenso redemoinho, um farol espiralado. Eu era sugado e me sentia confuso em meio a essa explosão, numa espécie de vertigem que não me dava náuseas. Durante um tempo que não saberia estabelecer, mas em todo caso não era muito longo; finalmente terminava, silencioso como tinha vindo, perdendo força como as ultimas faíscas de fogo que se apaga. Eu esperava alguns minutos, colocava a cabeça em outro canto e as imagens recomeçavam. Da terceira vez eram mais desbotadas, tinham cores menos lúcidas. Raramente o espetáculo noturno se repetia quatro vezes. No final, meio cansado mas satisfeito e ainda deslumbrado por todo aquele bombardeio de estrelas e brilhos solares, caía no sono. Isso tudo durou muito tempo, foi-se apagando com os primeiros sinais de adolescência, com outras perturbações muito mais concretas. É provável que se essas visões infantis continuassem com a maturidade teriam engolido toda a capacidade de pensar e agir. Não se trata de ficar em perene contemplação das próprias fantasias infantis. O importante seria reencontrar, no plano da consciência, a faculdade visionária. Exatamente porque é uma das possibilidades da natureza humana e não há razão para nos privarmos dela.”

FELLINI, Federico. “Fazer um filme” (p. 123-124)

sugerido por Priscyla Gomes

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Palco.

O produtor começou a contagem: 5, 4, (fez silêncio e continuou com os dedos) 3, 2, 1.

As luzes se ascenderam, todas focaram apenas um lugar em meio ao cenário escuro. Sobre a poltrona, atrás da mesa, eu lhes disse - Boooa noite amigos! Ou bom dia, depende de que horas são para vocês. Por aqui é sempre uma deliciosa madrugada de outono, fiquem a vontade e sintam-se em casa.

Sejam bem vindos a Le Cadavre Exquis!

Nesse primeiro programa iremos nos apresentar - cada um a sua maneira e cada qual ao seu gosto - e espero que vocês gostem. Hoje nos colocamos a sua frente despidos de toda a vergonha e investidos de toda coragem para nos mostrarmos a você, caro leitor, sem meias palavras nem truques, sem perfumaria ou tucanagem. Somos o que somos e ponto! Gostem ou não, nos amem ou não, somos isso. E vocês, como eu bem sei o que são, irão gostar de nos, irão nos amar, irão esperar por nossas palavras com anseio. Do contrário? Sem dúvidas, todos queimarão! Não poderia ser diferente conosco.

Mas não se preocupem, são fiéis, bem sei e confio. Deixemos as fogueiras para Abril.

Antes de dar a palavra aos meus companheiros que hão de entrar por esse palco e lhes apresentarem seus próprios shows sinto-me honrado em introduzi-lhes a vocês. Permitam que eu os apresente, vejo nesses sorrisos e olhos brilhantes que já os amam.

Felipe "Fi" Sanches, herdeiro de Cícero e Homero, Bocage e Augusto do Anjos, não de Capote ou Wilde. Poeta de grande tradição e competência que traz a esse palco uma habilidade ao par de Vinicius para tomar wisky. De estatura baixa e envergadura moral elevada profere os maiores xingamentos e ofensas sem corar e é capaz de enternecer seus corações com as sutilezas de seus poemas ou de te levar ao riso com a graça e pureza de seu falar. Com um cigarro na mão não teme o perigo que for, e, sim! os enfrenta, com Ira Divina, a turcos e mulheres de plástico. Por vezes, também, se retira e, sábio que é, sabe a hora exata de ir ao banheiro.

Konrad "Velho", antes de tudo um Kaiser germânico. Aristocrata, a elegância e finesse em pessoa. Saudável, poliglota, estudioso e aplicado nos orgulhará alcançando a imortalidade, brasileira e temporal. Com sua maestria jurídica há de acabar com a iniqüidade social e seu conhecimento histórico vai a consertar os erros do passado. Torna o mundo um lugar melhor, de cartola e fraque e estomacais clamores contra o Feio, aqui, no Panamá ou Panambi. É antes de antes de tudo e principalmente Belo, sabe e se orgulha que é o melhor que tem para oferecer.

Lucas Valim "Bezerro", aristocrático, nobre e, como não poderia deixar de ser, artista! De falar calmo, ouvidos atentos, andar manso sobre pés sasquaticos vai de suas terras, castelos e campos de Sant John of Good View à sua cidade e tortura de concreto. Artista eminente, arquiteto consagrado, labuta diariamente contra a gota, sem permitir que o torne como o outro, fraco aleijado. E a desafia, a beber e comer fartamente e a tomar banhos quentes para enganá-la. Vive a fotografar o mundo e a despeito de toda cor e beleza que vê, o faz em preto e branco, como que para não chatear vocês, menos privilegiados que ele e sua visão artística do mundo.

Esses, leitores e platéia, são os meus companheiros. Junto a eles, desde palco sem fim, vamos conquistar seus corações e lágrimas, sangues e mentes. Faremos de nossa forma, sem que haja consenso ou tirania, e faremos da confusão e sincronia de nossos shows um belo defunto, presunto, cadáver esquisito. Cadáver esse que olharão como a seus espelhos, seus álbuns de fotos e górgonas. Dormirão como as múmias egípcias, dançarão como las caveiras mexicanas, nesse cadáver encontrarão de tudo se pagarem a moeda de Caronte e atravessarem o mar de nosso submundo segurando em nossas mãos. Tenham coragem! Não se amedrontem! Atravessem conosco e saibam que talvez seja um favor se os deixarmos afogar, gostamos mais é dos mortos.

Deixo agora eles assumirem a ribalta e conduzirem o programa.

Saberão mantê-los interessados e alegres: irão jogar luz nas suas vidas negras e trevas nos seus sorrisos luminosos.

Eu, por hora, fico por aqui. Deixo as luzes da mesa e da poltrona e me sento no vazio de todo palco. Quero também assistir a todo esse espetáculo. Tenho certeza que nos conheceremos com o tempo e com calma, sem pressa nos tornaremos bons amigos.

Espero tê-los entretidos e que tratem bem meus companheiros, não quero que sejam vossos nossos primeiros cadáveres esquisitos.